6 de abr. de 2007

Artigo

Em artigo publicado no dia 22/3, Hélio Schwartsman comenta a proposta de criação do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), anunciado dias antes. Apesar de incentivar a iniciativa, critica o fato de a proposta não aproximar a educação do nível ideal, mas ajudar as escolas que estão abaixo da média. Também reforça a necessidade de "ações mais decididas" e ressalta possíveis dificuldades de implantação do programa. Reforça, ainda, a necessidade de dar vantagem a escolas, municípios e professores que se destaquerem em relação aos demais.

Tributo à Astúcia

Hélio Schwartsman, publicado no caderno Pensata, da Folha de São paulo de 22/03/2007

Aproveito que o governo anunciou, na semana passada, seu Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) para arriscar mais algumas considerações sobre esse importante tema.

As diretrizes do PDE, apresentadas pelo ministro Fernando Haddad, receberam elogios quase unânimes, incluindo de adversários da administração de Luiz Inácio Lula da Silva. Não serei eu o espírito de porco que vai tachar o plano de inepto, mas reservo-me o direito de cultivar algum ceticismo.

É claro que existem pontos positivos, muitos até. A ênfase do PDE recai corretamente sobre o ensino fundamental, mais especificamente sobre a alfabetização lingüística e matemática. E não há dúvida de que essa deve ser a prioridade. Nada tenho contra aulas de educação artística, capoeira, filosofia e culinária, mas, se o aluno não souber ler, escrever e realizar as seis operações algébricas, a escola não será para ele muito mais do que um grêmio recreativo. Certamente é muito melhor estar no colégio praticando esportes do que nas ruas iniciando-se nas artes do banditismo, mas a escola não pode ser apenas uma alternativa ao tráfico. É preciso, também, que ela ensine. Dizem as más línguas que foi inventada para isso.

Uma das principais inovações do PDE é a criação do Índice de Desenvolvimento da Educação Brasileira (Ideb). A idéia é engenhosa. O Ideb irá combinar numa nota que vai de 0 a 10 indicadores de resultado (desempenho de alunos em testes-padrão) e fluxo (dados de repetência e evasão). De posse dos números, o MEC pretende procurar os mil municípios com pior avaliação e pressionar os prefeitos para que aceitem uma espécie de "intervenção consentida". O ministério entraria com assistência especializada, equipamentos e recursos financeiros extras e, em contrapartida, o alcaide teria de acatar determinadas imposições técnicas. Não poderia mais, por exemplo, nomear apadrinhados políticos para o cargo de diretor de escola. Tais indicações teriam de estar baseadas no mérito. Para os anos seguintes, a manutenção do convênio fica vinculada ao cumprimento de metas, como a melhoria do desempenho no Ideb.

Haddad diz que já conta com R$ 500 milhões para aplicar neste programa em 2007 e espera conseguir outros R$ 500 milhões, chegando a R$ 1 bilhão só este ano.

Cabem aqui várias observações. A proposta me parece tímida. Imaginemos, a título de experimento mental, que tudo saia o melhor possível, que todos os prefeitos concordem com a interferência federal e que o MEC consiga o pequeno milagre de, no curto espaço de quatro ou cinco anos, fazer com que os mil piores se recuperem e cheguem à média nacional de hoje. Onde isso no coloca? Mais ou menos onde já estamos. É claro que, por efeito estatístico, a mediana subiria, mas o país continuaria com uma educação no geral muito ruim. Cerca de 5.000 municípios que não estão na rabeira nem sequer seriam afetados pela principal ação em favor do ensino.

Basicamente, senti falta de ações mais decididas _que vão além da Olimpíada da Língua Portuguesa, cuja criação está prevista no projeto_ para melhorar os indicadores dos grupos que já se encontram na média ou mesmo acima dela. Os primeiros do último pelotão ainda chegam depois dos últimos do primeiro. E, em termos internacionais, o Brasil está muito, muito atrás dos que correm na frente, incluindo nossas chamadas escolas de elite (particulares).

Outro problema da proposta está na relativa leniência com que trata autoridades que não dão a mínima para a educação. Prefeitos que se recusem a aderir ao programa apenas deixariam de receber recursos extras. No mais, seguiriam livres para delinqüir contra a garotada.

Prevejo ainda dificuldades na regulamentação da matéria. Basta lembrar que, em São Paulo, o Estado mantém muitas das escolas que atendem a alunos da 1ª à 4ª série. Incluí-las no programa exigiria, além de um convênio com a prefeitura, um com o Estado.

Também ganhou destaque na mídia o dispositivo do PDE que prevê a realização de uma prova para avaliar a alfabetização a ser aplicada a alunos entre 6 e 8 anos de idade. Esse é, para mim, um destaque positivo. Se estamos falhando nessa tarefa tão básica, precisamos tentar descobrir exatamente em que ponto e por quê. Não resisto, entretanto, a deixar de lembrar que, em 2005, o Ministério Público paulista, em conluio com a Justiça, proibiu os colégios particulares de realizarem provas para a seleção de alunos novos no pré e na 1ª série. O argumento básico era o de que crianças de 6 ou 7 anos não poderiam ser submetidas a tamanho estresse. Pelas mesmíssimas razões, os procuradores deveriam agora tentar bloquear o teste federal.

No que diz respeito aos professores, o PDE também traz boas notícias. Haddad propõe a criação de um piso salarial para o magistério que deverá ficar nas imediações dos R$ 800. Trata-se de uma melhoria importante que era devida já havia muito. É verdade que os estudos disponíveis não mostram uma correlação inequívoca entre salário de mestre e qualidade de ensino, mas era preciso pelo menos sinalizar que o governo ainda não considera "superada" a nobre profissão de professor. Com mais uns alguns aumentos assim, dentro poucas décadas essa talvez volte a ser uma função respeitada. As verbas para essa despesa já existem. Viriam do Fundeb.

Vale destacar ainda a proposta que vincula todos os professores do país a uma universidade, onde terão de submeter-se a atualizações trienais. Os que ainda não possuem diploma de nível superior terão a oportunidade de obtê-lo.

Haveria muitos outros pontos do PDE a analisar. Como já abusei do tempo e da paciência do leitor que chegou até aqui, abstenho-me da fazê-lo. Limito-me a comentar uma importante ausência. Não vi no plano nenhum incentivo ao que chamei na coluna da semana passada de "um pouco de concorrência com 'feedback' positivo", ou seja, um sistema que premiê os que se esforçarem mais. Minto. Há um embrião dessa idéia em relação às universidades federais, que receberão recursos extras caso cumpram determinadas metas. A proposta, porém, vem acompanhada de tantas ressalvas com vistas a eliminar a possibilidade de competição entre as instituições que acaba se anulando.

Não sou exatamente um entusiasta do capitalismo, mas é preciso convir que esse sistema tem uma incrível capacidade de encontrar soluções criativas para todo tipo de problema que apareça. Basta que se ofereça uma vantagem qualquer para quem apresentar a resposta que, se houver uma, ela aparece. Outros tentarão fazer o mesmo, deflagrando um processo de aperfeiçoamento contínuo. Tamanha é a força dessa disposição que, se não tomarmos as devidas precauções, barreiras legais e morais são rápida e facilmente atropeladas.

A busca frenética pela vantagem tende a gerar muitas assimetrias e desigualdades. Mas elas só aparecem porque já não éramos antes, para início de conversa, todos iguais. Configuraria teimosa parvoíce deixar de usar características do capitalismo que poderiam resultar em benefícios para o bem comum. Se todos os professores, diretores e escolas tentassem --ainda que pelos motivos que alguns classificam como errados-- melhorar, o saldo líquido seria a melhoria do ensino, justamente o objetivo que perseguimos. O isonomismo principista que ainda se apregoa para o serviço público apenas tende a nivelar por baixo.

Mesmo com todos esses problemas e muitos outros que deverão surgir nas fases de regulamentação e implementação, torço para que o PDE comece a reverter o atual quadro de descalabro educacional. Ou o Brasil acerta os rumos do ensino nos próximos anos ou sacrificaremos mais uma geração à estultícia.

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